segunda-feira, 29 de novembro de 2010

(...)


Podia ser só amizade, paixão, carinho, admiração, respeito, ternura, tesão. Com tantos sentimentos arrumados cuidadosamente na prateleira de cima, tinha de ser justo amor, meu Deus? Porque quando fecho os olhos, é você quem eu vejo: aos lados, em cima, embaixo, por fora e por dentro de mim. Dilacerando felicidades de mentira, desconstruindo tudo o que planejei. Abrindo todas as janelas para um mundo deserto. 
É você quem sorri, morde o lábio, fala grosso, conta histórias, me tira do sério, faz ares de palhaço, pinta segredos, ilumina o corredor por onde passo todos os dias. É agora que quero dividir maçãs, achar o fim do arco-íris, pisar sobre estrelas e acordar serena. É para já que preciso contar as descobertas, alisar seu peito, preparar uma massa, sentir seus cílios. “Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?” Não quero saber de medo, paciência, tempo que vai chegar. 
Não negue, apareça. Seja forte.
(Caio Fernando Abreu)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O velho e o moço.


Deixo tudo assim
Não me importo em ver a idade em mim,
Ouço o que convém
Eu gosto é do gasto.
Sei do incômodo e ela tem razão
Quando vem dizer, que eu preciso sim
De todo o cuidado
E se eu fosse o primeiro a voltar
Pra mudar o que eu fiz,
Quem então agora eu seria?
Ahh, tanto faz
Que o que não foi não é
Eu sei que ainda vou voltar...
Mas eu quem será?
Deixo tudo assim,
Não me acanho em ver
Vaidade em mim
Eu digo o que condiz.
Eu gosto é do estrago.
Sei do escândalo
E eles têm razão
Quando vêm dizer
Que eu não sei medir
Nem tempo e nem medo
E se eu for
O primeiro a prever
E poder desistir
Do que for dar errado?
Ahhh
Ora, se não sou eu
Quem mais vai decidir
O que é bom pra mim?
Dispenso a previsão!
Ah, se o que eu sou
É também o que eu escolhi ser
Aceito a condição
Vou levando assim
Que o acaso é amigo
Do meu coração
Quando fala comigo,
Quando eu sei ouvir...
 (Rodrigo Amarante)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Por não estarem distraídos.

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos. (Clarice Lispector)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Trecho de O amor é um cão dos diabos.

“Havia um gatinho branco com as costas voltadas para um dos cantos do muro. Não podia subir pelos tijolos nem fugir em qualquer outra direção. Suas costas estavam arqueadas e ele bufava, as garras prontas. Era, no entanto, pequeno demais para dar conta do buldogue de Chuck, Barney, que rosnava e se aproximava mais e mais. Tive impressão de que aquele gato havia sido colocado ali pelos garotos e de que somente depois o buldogue fora levado até ali. Sentia isso intensamente pelo modo que Chuck e Eddie e Gene acompanhavam a cena: o aspecto deles os incriminava.
- Caras, vocês armaram essa – eu disse.
- Não – rebateu Chuck –, a culpa é do gato. Ele veio até aqui.
- Deixe que ele se vire agora para escapar.
- Odeio vocês, seus desgraçados – eu disse.
- Barney vai matar o gato – disse Gene.
- Barney vai fazer picadinho do bichano – disse Eddie. – Ele está com medo das unhas do gato, mas quando avançar estará tudo encerrado.
Barney era um buldogue grande e marrom com as bochechas flácidas e cheias de baba. Ele era gordo e meio abobalhado e tinhas olhos castanhos inexpressivos. Rosnava constantemente e ia avançando devagar, os pelos do pescoço e das costas eriçados. Eu sentia vontade de lhe dar um chute no seu rabo estúpido, mas percebi que ele arrancaria minha perna fora. O cão estava completamente tomado por um espírito assassino. O gato branco sequer tinha terminado de crescer. O bichinho soltava um silvo agudo e esperava, comprimido contra o muro, uma criatura belíssima, tão limpa.
O cachorro avançou lentamente. Por que esses caras precisavam disso? Não era uma questão de coragem, era apenas um jogo sujo. Onde estavam os adultos? Onde estavam as autoridades? Para me acusar de alguma coisa estavam sempre por perto. Onde tinham se enfiado agora?
Pensei em intervir na cena, apanhar o gato e sair correndo, mas eu não tinha forças. Tinha medo de que o buldogue me atacasse. A consciência de que me faltava coragem para fazer o que era necessário fez com que me sentisse péssimo. Comecei a ficar enjoado. Estava fraco. Eu não queria que aquilo acontecesse, ainda que eu não conseguisse encontrar nenhuma maneira de evitar o massacre.
- Chuck – eu disse –, deixe o gato ir, por favor. Chame seu cachorro.
Chuck não respondeu. Continuou apenas observando. Então disse:
- Vai, Barney, pegue ele! Pegue o gato!
Barney avançou e de súbito o gato deu um salto. O bicho se transformara numa furiosa mancha branca, toda silvos, garras e dentes. Barney recuou e o gato voltou novamente para o muro.
- Pegue ele, Barney – disse Chuck novamente.
- Cale a boca, maldito! – gritei para ele.
- Não fale comigo desse jeito – retrucou.
Barney começava a avançar novamente.
- Caras, vocês armaram tudo isso aqui – eu disse.
Ouvi um leve ruído atrás de nós e voltei a cabeça. Vi o velho sr. Gibson a nos observar de trás da janela de seu quarto. Ele também queria que o gato fosse morto, assim como os garotos. Por que?
O velho sr. Gibson era nosso carteiro. Usava dentadura. Tinha uma esposa que passava o tempo inteiro em casa. A sra. Gibson sempre usava uma rede sobre os cabelos e sempre trajava uma camisola, roupão de banho e chinelos.
Então apareceu a sra. Gibson, vestida como de costume, e se postou ao lado do marido, esperando pela carnificina. O velho sr. Gibson era um dos poucos que tinha um emprego, mas ainda assim ele precisava ver o gato morto. Gibson era como Chuck, Eddie e Gene.
Havia muitos deles.
O buldogue se aproximou. Eu não podia ver aquele crime. Senti uma vergonha profunda por abandonar o gato à própria sorte. Havia sempre a chance de que o bichano pudesse escapar, mas eu sabia que os garotos não deixariam isso acontecer. Aquele gato não enfrentava apenas o buldogue, ele enfrentava a humanidade inteira.
Dei meia-volta e me afastei, para fora do quintal, passando pela entrada do carro e chegando ã calçada. Caminhei em direção ao local onde eu morava e lá, no pátio em frente ã sua casa, meu pai estava plantado, me esperando.
- Onde você estava? – ele perguntou.
Não respondi.
- Já pra dentro – ele disse. – E pare de parecer tão infeliz ou lhe darei algo para que você realmente sinta o que é infelicidade!”

"Na minha próxima vida, quero ser um gato. Dormir 20 horas por dia e esperar ser alimentado. Sentar por aí lambendo meu cu. Os humanos são desgraçados demais, irados demais, obcecados demais."
 
 (Charles Bukowski)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O salto.

A gente não tem como saber se vai dar certo. Talvez, lá adiante, haja uma mesa num restaurante, onde você mexerá o suco com o canudo, enquanto eu quebro uns palitos sobre o prato - pequenas atividades às quais nos dedicaremos com inútil afinco, adiando o momento de dizer o que deve ser dito. Talvez, lá adiante: mas entre o silêncio que pode estar nos esperando então e o presente - você acabou de sair da minha casa, seu cheiro ainda surge vez ou outra pelo quarto –, quem sabe não seremos felizes? Entre a concretude do beijo de cinco minutos atrás e a premonição do canudo girando no copo pode caber uma vida inteira. Ou duas.
Passos improvisados de tango e risadas, no corredor do meu apartamento. Uma festa cheia de amigos queridos, celebrando alguma coisa que não saberemos direito o que é, mas que deve ser celebrada. Abraços, borrachudos, a primeira visão de seu necessaire (para que tanto creme, meu Deus?!), respirações ofegantes, camarões, cafunés, banhos de mar – você me agarrando com as pernas e tapando o nariz, enquanto subimos e descemos com as ondas - mãos dadas no cinema, uma poltrona verde e gorda comprada num antiquário, um tatu bola na grama de um sítio, algumas cidades domesticadas sob nossos pés, postais pregados com tachinhas no mural da cozinha e garrafas vazias num canto da área de serviço. Então, numa manhã, enquanto leio o jornal, te verei escovando os dentes e andando pela casa, dessa maneira aplicada e displicente que você tem de escovar os dentes e andar ao mesmo tempo e saberei, com a grandiosa certeza que surge das pequenas descobertas, que sou feliz.
Talvez, céus nublados e pancadas esparsas nos esperem mais adiante. Silêncios onde deveria haver palavras, palavras onde poderia haver carinho, batidas de frente, gritos até. Depois faremos as pazes. Ou não?
Tudo que sabemos agora é que eu te quero, você me quer e temos todo o tempo e o espaço diante de nossos narizes para fazer disso o melhor que pudermos. Se tivermos cuidado e sorte – sobretudo, talvez, sorte - quem sabe, dê certo? Não é fácil. Tampouco impossível. E se existe essa centelha quase palpável, essa esperança intensa que chamamos de amor, então não há nada mais sensato a fazer do que soltarmos as mãos dos trapézios, perdermos a frágil segurança de nossas solidões e nos enlaçarmos em pleno ar. Talvez nos esborrachemos. Talvez saiamos voando. Não temos como saber se vai dar certo - o verdadeiro encontro só se dá ao tirarmos os pés do chão -, mas a vida não tem nenhum sentido se não for para dar o salto.  (Antonio Prata)